A quem esta mensagem possa ter encontrado, começo por apresentar-me. Sou um Náufrago. Ou seja, sou alguém que veio parar numa ilha desconhecida do resto do mundo, isolada na imensidão de um oceano qualquer, e da qual as hipóteses de um dia partir ou ser resgatado são muito remotas. Cheguei a esta ilha por mero acaso do destino. Na verdade já nasci náufrago, filho de náufragos que por sua vez também já nasceram naquela condição. Posso dizer que pertenço a uma longa linhagem de Náufragos, que ao longo de séculos passaram de ilha em ilha, na esperança de algum dia voltar à casa.
Foi neste ambiente familiar que cresci. Apesar de Náufrago nativo, não deixei de ser um náufrago, confirmando assim o estatuto da minha linhagem secular. Como era de se esperar, não me sentia como parte daquela ilha, mas como alguém que veio de outro lado e que não era capaz de se integrar, por mais esforço que despendesse. Ao longo dos 29 anos em que estive naquela ilha, vivi sempre com a sensação de que algo melhor me esperava algures. Se me pedissem uma lista dos sítios onde certamente a minha vida seria melhor do que naquela ilha onde eu havia nascido, rapidamente conseguia fornecer uma dezena de opções.
Finalmente um dia, tomei a decisão de avançar para a grande aventura da minha vida: regressar a casa. E para mim, graças a influência recebida dos meus progenitores, a “casa” era aquela pequena ilha, de onde os meus pais náufragos haviam partido 40 anos atrás. Ops! Naufraguei outra vez. É desta ilha que vos escrevo estas mensagens.



quarta-feira, 23 de julho de 2008

O meu olho esquerdo

Nós, os náufragos desta ilha, acabamos por ter as mesmas necessidades de todos os outros náufragos espalhados pelas muitas ilhas deste imenso oceano. A principal delas, talvez em decorrência do isolamento e do individualismo em que nos auto-aprisionamos, é a necessidade de encontrarmos alguém que oiça os nossos problemas, as nossas angústias, os nossos receios. Queremos apenas que nos oiçam, sem qualquer tipo de censura, conselho ou julgamento. Ansiamos desesperadamente por despejar todo o lixo que acumulamos ao longo do dia-a-dia, sobre alguém que limite-se a carrega-lo para bem longe de nós.
Com o passar dos anos, e com cada vez mais náufragos a procura de quem recolha os dejectos que trazem na alma, os ouvidos gratuitamente disponíveis tornaram-se cada vez mais raros, ao ponto de muitos passarem a pagar pela disponibilidade de ouvidos profissionais para tratarem do lixo, mas uma vez que cobram para o efeito, fazem-no com técnica e método. No entanto, mesmo havendo esta alternativa, todos continuamos a acreditar que podemos contar com alguém, que por laços de sangue ou de afinidade, estará sempre disponível para ouvir-nos e oferecer-nos carinhosamente o ombro para que possamos chorar. Esta nossa expectativa em relação a capacidade de compreensão e de aceitação dos outros perante os nossos problemas, muitas vezes acaba em frustração. Ou porque não conseguimos dizer aquilo que realmente esperamos deles, ou simplesmente porque eles não estão preparados para atender às nossas necessidades.
É como o episódio de um homem que ao andar pela rua distraído, foi de encontro ao ramo de uma árvore e espetou-se no olho esquerdo. Desesperado de dor, e a procura de ajuda, olhou para o edifício a sua frente e apercebeu-se que havia ali uma clínica médica no segundo piso. Rapidamente entrou no elevador e seguiu para a clínica. Como o elevador parou no primeiro piso, sem dar-se conta que estava no piso errado, dirigiu-se para a primeira porta que viu e entrou desesperado a dizer que tinha o olho esquerdo ferido. Sem saber, o homem havia entrado no escritório de um advogado, que confuso com a situação, disse-lhe que não podia ajuda-lo. O homem irritado, gritou com o advogado, exigindo que este lhe tratasse do olho, ao que o advogado respondeu: - O senhor não está a perceber. A minha área é Direito. O homem estupefacto exclamou: - Mas que diabo de especialização! Então quem é que pode tratar-me do olho esquerdo?


Sem comentários: