A quem esta mensagem possa ter encontrado, começo por apresentar-me. Sou um Náufrago. Ou seja, sou alguém que veio parar numa ilha desconhecida do resto do mundo, isolada na imensidão de um oceano qualquer, e da qual as hipóteses de um dia partir ou ser resgatado são muito remotas. Cheguei a esta ilha por mero acaso do destino. Na verdade já nasci náufrago, filho de náufragos que por sua vez também já nasceram naquela condição. Posso dizer que pertenço a uma longa linhagem de Náufragos, que ao longo de séculos passaram de ilha em ilha, na esperança de algum dia voltar à casa.
Foi neste ambiente familiar que cresci. Apesar de Náufrago nativo, não deixei de ser um náufrago, confirmando assim o estatuto da minha linhagem secular. Como era de se esperar, não me sentia como parte daquela ilha, mas como alguém que veio de outro lado e que não era capaz de se integrar, por mais esforço que despendesse. Ao longo dos 29 anos em que estive naquela ilha, vivi sempre com a sensação de que algo melhor me esperava algures. Se me pedissem uma lista dos sítios onde certamente a minha vida seria melhor do que naquela ilha onde eu havia nascido, rapidamente conseguia fornecer uma dezena de opções.
Finalmente um dia, tomei a decisão de avançar para a grande aventura da minha vida: regressar a casa. E para mim, graças a influência recebida dos meus progenitores, a “casa” era aquela pequena ilha, de onde os meus pais náufragos haviam partido 40 anos atrás. Ops! Naufraguei outra vez. É desta ilha que vos escrevo estas mensagens.



quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Um Desejo de Natal

(Este conto foi escrito para a Campanha de Natal da Crioestaminal em beneficio da Casa do Gil)

Numa noite de Natal, Lígia e Laura corriam pela sala eufóricas com os preparativos da grande festa. Lígia acabara de completar os seus quatro anos e Laura iria comemorar o seu primeiro ano de vida, no último dia do ano. Corriam a volta da Arvore de Natal, que quase desaparecia no meio das dezenas de embrulhos com brinquedos para as duas. Como acontece com muitas crianças hoje em dia, o desejo de avós, pais, familiares e amigos, de ver o sorriso estampado naquelas pequenas bochechas, ao rasgarem ansiosamente o papel para descobrir mais um brinquedo, faz com que esses pequenos recebam muito mais do que seria razoável.

Chegada a hora de abrirmos as prendas, lá correram Lígia e Laura para junto da Árvore de Natal, e começaram a rasgar os embrulhos num grande corrupio, como se as prendas ainda cobertas pelo papel, fossem dali fugir para qualquer sítio. Depois de algum tempo, já nem sequer ligavam ao conteúdo dos pacotes, mas sim a brincadeira de tantos pedaços de papel espalhados por todo o lado.

Sofia, a mãe, diante de tanta abundância, comentou com as meninas que elas eram muito afortunadas, pois recebiam imensas prendas, quando outras crianças nada recebiam na noite de Natal. Foi aí que Lígia, com a sabedoria que só as crianças de quatro anos podem ter, disse que o Pai Natal poderia levar parte daquelas prendas para as crianças que nada receberiam naquela noite. Sofia pediu então às meninas, que escolhessem três brinquedos cada uma e que assim o Pai Natal levaria todas as outras prendas para as crianças, que de outra forma nada receberiam.

Lígia e Laura escolheram os seus brinquedos preferidos, e ajudaram os pais a arrumar as outras prendas, para que o Pai Natal as levasse para todas aquelas crianças. De seguida foram dormir, ansiosas pela chegada do Pai Natal, não para trazer as suas prendas, mas para leva-las. No dia seguinte ao acordar, depararam-se apenas com a Árvore de Natal, que agora apresentava toda a sua beleza, pois já não havia prendas a sua volta. – O Pai Natal levou as nossas prendas para as crianças tristes e agora elas devem estar felizes – disse Lígia. E ficaram a saltar as duas numa grande felicidade.

Esta noite ainda não aconteceu, mas seria maravilhoso ver as minhas filhas tão felizes, não pelas prendas que receberam, mas pela felicidade de tantas outras crianças.

Este é o meu desejo de Natal.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Quero ser criança

De volta a minha vida de náufrago, deparo-me com uma sensação de cansaço que vai se tornando cada vez mais intensa a medida que o tempo passa. Não me refiro ao cansaço físico, que acaba por surgir por consequência, mas a um cansaço do espírito, como se carregasse o mundo às costas sem ter onde o pousar.

Aqui nesta ilha, aliás como em qualquer lado, os náufragos estão constantemente a debitar sobre os outros as suas opiniões, as suas ideias, verdades absolutas que apresentam com grande propriedade e total certeza. Diante de qualquer acção ou decisão que eu tome, tenho sempre pareceres, previsões e conclusões oferecidas gratuitamente pelos outros, sem que eu nada peça ou pergunte. Eu próprio, como num episódio de dupla ou tripla personalidade, vejo-me a julgar, atacar e desacreditar as minhas próprias ideias e decisões, bloqueando qualquer reacção inovadora que possa tentar aplicar aos obstáculos que a vida me apresenta.

Depois de anos a levar com as restrições impostas pelos outros e por nós mesmos, vamos nos tornando seres apáticos, previsíveis, completamente desinteressantes. Como diz alguém que conheço, "começo a sentir-me farto de mim mesmo, farto da pessoa que me tornei".

A vida deveria ser como num conto escrito por um grande humorista brasileiro, no qual os homens nasciam velhos e com todo o conhecimento e experiencia disponível na humanidade. Depois tornavam-se mais novos a medida que o tempo passava, a saber cada vez menos, a ter cada vez menos restrições e limites às suas ideias e acções, até o dia em que morriam como pequenos bebés, completamente ignorantes e ingénuos.

Era assim que eu gostaria que a minha vida fosse daqui para frente. Com menos certezas, menos pré-conceitos, menos expectativas. Voltar a fazer tudo como se fosse a primeira vez. Viver cada momento como se não houvesse amanhã. E um dia, quando alguém me encontrasse nesta ilha, um bebé a dormir confortavelmente enroscado por baixo de um céu estrelado, olharia em silêncio e pensaria: Dorme em paz bebé, por toda a eternidade…

sexta-feira, 25 de julho de 2008

A Cigarra e a Formiga

Quase todos os náufragos que conheço, foram educados segundo o principio de que só o trabalho árduo e o esforço extremo são capazes de levar o Homem a sentir-se realizado e pleno em relação a si e a comunidade na qual está inserido. Dizer que foram educados, não significa que foram impelidos a isto, mas pelo menos na teoria este princípio foi transmitido como algo que habitualmente era praticado pelos seus antepassados. Mas, independentemente de partilharem ou não este princípio, a verdade é que a virtude não está no objectivo, ou seja: a realização e a plenitude, mas sim naquilo que fazemos todos os dias e principalmente como fazemos.
É preciso que as novas gerações de náufragos percebam que a grande decisão que deverão tomar nas suas vidas, não será escolher a profissão que lhes traga mais “status” ou recompensa financeira, mas antes descobrir aquilo que realmente lhes dará gozo e satisfação emocional. O resto virá como consequência. Também não deverão encarar o seu percurso profissional como uma única via onde só poderão caminhar em frente. Os jovens Náufragos poderão traçar as suas carreiras através de um sem número de actividades paralelas, que lhes permitirão experimentar diversas realidades e atingir diferentes níveis de percepção. Regressaremos ao Universalismo do Renascimento, em que um mesmo indivíduo, apresentava-se como, pintor, escultor, escritor, matemático filósofo, etc., etc., etc., Já imaginaram como seria o cartão de visitas do Leonardo Da Vinci?
Com base neste meu desejo, proponho alterarmos a famosa fábula da Cigarra e da Formiga para ir de encontro a este novo paradigma. Após um longo verão em que a Formiga fartou-se de trabalhar a reunir alimento e a Cigarra passou todo o tempo a cantar as suas belas canções e a comer o que a natureza lhe fornecia sem qualquer esforço, eis que chegou o inverno. A Cigarra bateu a porta da Formiga e disse-lhe: - Olá amiga formiga! Como tem passado? Vim trazer-lhe o meu CD que acabou de ser lançado. Após todo o verão a ensaiar as minhas músicas, assinei um contrato milionário com uma editora e tornei-me rica e famosa. A Formiga, surpresa com a visita, respondeu: - Minha amiga Cigarra! Não estava a espera desta visita. A vida também corre-me bem. Ao invés de estar aqui dentro, sentada sobre todo o alimento que amealhei durante o verão e a bater com a porta na cara de outros insectos menos favorecidos, decidi fornecer provisões em troca de outros bens e serviços e com isso criei um entreposto comercial que já é reconhecido em toda a região. Felizes com as suas vidas, a Formiga e a Cigarra continuaram a conversa a saborear um delicioso chá. Lição da história: Não interessa o quanto trabalhamos. O importante é sermos Felizes.
Com isto despeço-me durante este período de férias.
Às amigas Formigas, com um sincero abraço.
A Cigarra.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

O meu olho esquerdo

Nós, os náufragos desta ilha, acabamos por ter as mesmas necessidades de todos os outros náufragos espalhados pelas muitas ilhas deste imenso oceano. A principal delas, talvez em decorrência do isolamento e do individualismo em que nos auto-aprisionamos, é a necessidade de encontrarmos alguém que oiça os nossos problemas, as nossas angústias, os nossos receios. Queremos apenas que nos oiçam, sem qualquer tipo de censura, conselho ou julgamento. Ansiamos desesperadamente por despejar todo o lixo que acumulamos ao longo do dia-a-dia, sobre alguém que limite-se a carrega-lo para bem longe de nós.
Com o passar dos anos, e com cada vez mais náufragos a procura de quem recolha os dejectos que trazem na alma, os ouvidos gratuitamente disponíveis tornaram-se cada vez mais raros, ao ponto de muitos passarem a pagar pela disponibilidade de ouvidos profissionais para tratarem do lixo, mas uma vez que cobram para o efeito, fazem-no com técnica e método. No entanto, mesmo havendo esta alternativa, todos continuamos a acreditar que podemos contar com alguém, que por laços de sangue ou de afinidade, estará sempre disponível para ouvir-nos e oferecer-nos carinhosamente o ombro para que possamos chorar. Esta nossa expectativa em relação a capacidade de compreensão e de aceitação dos outros perante os nossos problemas, muitas vezes acaba em frustração. Ou porque não conseguimos dizer aquilo que realmente esperamos deles, ou simplesmente porque eles não estão preparados para atender às nossas necessidades.
É como o episódio de um homem que ao andar pela rua distraído, foi de encontro ao ramo de uma árvore e espetou-se no olho esquerdo. Desesperado de dor, e a procura de ajuda, olhou para o edifício a sua frente e apercebeu-se que havia ali uma clínica médica no segundo piso. Rapidamente entrou no elevador e seguiu para a clínica. Como o elevador parou no primeiro piso, sem dar-se conta que estava no piso errado, dirigiu-se para a primeira porta que viu e entrou desesperado a dizer que tinha o olho esquerdo ferido. Sem saber, o homem havia entrado no escritório de um advogado, que confuso com a situação, disse-lhe que não podia ajuda-lo. O homem irritado, gritou com o advogado, exigindo que este lhe tratasse do olho, ao que o advogado respondeu: - O senhor não está a perceber. A minha área é Direito. O homem estupefacto exclamou: - Mas que diabo de especialização! Então quem é que pode tratar-me do olho esquerdo?


quinta-feira, 17 de julho de 2008

Não atirem mais pedras

Há algo no ar desta ilha onde me encontro, que faz com que as pessoas só consigam ver o lado negativo da vida, o copo meio vazio, a tristeza e o azar. Até a música mais representativa destas gentes, reforça o lamento e valoriza o sofrer. E o pior é que não se limitam a malfadar as suas próprias vidas, mas quase que anseiam pela desgraça alheia. Querem-se todos solidários no infortúnio. E quando há alguém que vence, que ganha, que se supera, rapidamente passa a ser um corpo estranho neste organismo moribundo que é a comunidade desta ilha.
Por causa deste desejo insaciável de testemunhar a tragédia alheia, formou-se no seio desta sociedade, um grupo de indivíduos cujo único objectivo é o de noticiar a desgraça, o insucesso e o “falhanço” de tudo e todos que tentam criar alguma coisa. Chego a imaginar o que teria acontecido se um destes arautos da catástrofe, tivesse participado no episódio em que Jesus, ao ver uma multidão que preparava-se para apedrejar uma mulher que havia pecado, apresentou-se diante da turba, e após apanhar uma pedra do chão, a ofereceu aos executores e desafiou a quem nunca houvesse pecado na vida, a atirar a primeira pedra. Certamente aquele repórter do desastre, não por nunca ter pecado, mas pela ânsia de poder noticiar tamanha atrocidade, pegaria naquela pedra e a atiraria à mulher, dando início assim a execução da pena capital.
Era de se esperar que tal acontecesse, uma vez que a grande maioria dos náufragos desta ilha, dão muito mais valor ao que corre mal do que a qualquer coisa que porventura tenha resultado. Era de se esperar mas não é para aceitar.
Na história da humanidade, nenhuma sociedade conseguiu construir algo, preocupando-se mais com aquilo que poderia correr mal do que avançando para fazer tudo o que acreditavam que iria correr bem.
A partir de hoje, decidi ignorar os avisos de percalços, os alertas do abismo, as previsões do apocalipse, e dedicar-me apenas às “Boas Novas”, às vitórias, às recuperações, às alegrias. Talvez se todos nós deixássemos de dar ouvidos aos adoradores do Pessimismo, eles se calassem, desaparecessem no meio da multidão, e acabassem por dar com a cabeça nas suas próprias pedras.


quarta-feira, 9 de julho de 2008

A espera de um Milagre

Diante do isolamento a que estamos condenados nesta ilha, há dias em que o desespero nos invade como as vagas de um Tsunami, arrasando com qualquer perspectiva de um futuro melhor. Nestas alturas, resta-nos acreditar que acontecerá um Milagre. Algo maravilhoso que mudará completamente as nossas vidas e que remeterá para o passado todo o sofrimento e a angústia que até então carregávamos connosco. Com o passar do tempo, ficamos cada vez mais dependentes da ideia de que só este grande acontecimento será capaz de nos salvar, e agarramo-nos à esta esperança como se não existisse mais nenhuma outra alternativa.
De repente, lembrei-me de uma anedota que ouvi há alguns anos e que me fez reflectir sobre isto. “Durante uma grande inundação, um homem esperava sentado no telhado da sua casa, enquanto a água continuava a subir pondo em risco a sua vida. Apareceu um vizinho num pequeno barco a remo e disse-lhe para entrar no barco, ao que o homem respondeu: - Sou um homem de fé. O Senhor virá me salvar. O vizinho ainda insistiu, mas o homem não aceitou a ajuda. Mas tarde, apareceu uma embarcação da Protecção Civil, que apesar de sobrelotada com outros resgatados, insistiu para que o homem se juntasse ao grupo, mas temendo que a embarcação afundasse, respondeu: - Sou um homem de fé. O Senhor virá me salvar. Finalmente, surgiu um helicóptero que atirou uma escada para que o homem a agarrasse, mas com medo de cair, disse novamente: - Sou um homem de fé. O Senhor virá me salvar. O nível da água subiu para além do telhado e o homem morreu afogado. Ao chegar ao Céu, dirigiu-se ao Senhor e irritado disse-lhe: Senhor, fui um bom homem durante toda a minha vida, e mantive a minha fé num milagre até ao último instante, e não me salvaste. O Senhor voltou-se para ele e respondeu: Mandei-te um vizinho para te salvar e recusaste, depois enviei os senhores da Protecção Civil e também não aceitaste, por fim um helicóptero e não confiaste. Não há milagre que salve a quem não quer ser salvo”.
Os milagres acontecem todos os dias, nas mais pequenas coisas que estão ao nosso redor. Temos que ser capazes de desviar o olhar daquilo que tanto esperamos e aceitar o que a vida já nos ofereceu. Só assim seremos salvos.

Eles não querem brincar

Depois de algum tempo nesta ilha, alguns de nós optaram por estabelecer um conjunto de regras para garantir que os interesses de cada um não suplantassem a vontade de todos em prol do convívio pacífico e saudável dos elementos do grupo. No entanto, alguns náufragos decidiram não seguir estas regras e preferiram fazer tudo o que lhes apetecesse, sem respeitar a liberdade dos outros. As razões para justificar tal comportamento eram as mais variadas: Ou porque eram uns pobres coitados marginalizados pelo sistema, ou porque já estavam na ilha há mais tempo e por isso tinham adquirido imunidade vitalícia, porque eram mais inteligentes, porque eram mais ricos, porque eram diferentes, etc, etc, etc. Em resumo, não estavam dispostos a brincar às Leis.
Aqueles que haviam aceite viver segundo as regras estabelecidas, eram vigiados por todo o grupo para garantir que as leis eram cumpridas e quando alguma infracção era cometida, os “polícias” e os “juízes” tratavam de estabelecer uma penalização e aplica-la. Os que não aderiram à brincadeira, simplesmente ignoravam e desprezavam todo o sistema e achavam uma patetice aqueles que por livre vontade aceitavam participar.
Após algum tempo, a primeira ideia dos cumpridores da lei, foi a de obrigar aos que não aceitaram o sistema, a obedece-lo e a viver segundo as suas regras. Mas depressa perceberam que quanto mais tentavam impor à força a brincadeira, mas engenhosos os dissidentes se tornavam, nas formas de contornar o sistema e continuarem impunes.
Por fim, chegamos a conclusão que a única forma seria convence-los de que a brincadeira era divertida e que seria muito melhor se aceitassem brincar connosco. Uma tarefa árdua e demorada, mas a única que resolveria o problema definitivamente.
“Um dia, enquanto viajava de comboio, vi um homem que fumava um charuto, apesar de todos os avisos de proibido fumar. Mais tarde, o revisor passou pelo senhor com o charuto sem nada dizer. Como apetecia-me fumar um cigarro, dirigi-me ao revisor e perguntei-lhe se podia fumar. Ele respondeu-me que era proibido fumar no comboio e perguntou-me se não havia visto os avisos. Perguntei-lhe então porque razão o outro senhor podia fumar um charuto. O revisor respondeu-me: - Não pode. Mas ele não me perguntou se podia. “

terça-feira, 8 de julho de 2008

A estrela nossa de cada dia

Aqui na ilha vivemos uma grave crise. Não falo de uma crise económica, apesar desta também existir, mas com a qual sobrevivemos com mais ou menos cocos e raízes, conforme a altura do ano. A crise a qual me refiro é uma crise de carácter, de ética, de honestidade e de cidadania.
É óbvio que era de se esperar que algo assim acontecesse, num sítio em que não existem instituições que assegurem a manutenção da ordem social (ou se existem ninguém deu por elas), leis e regras que definam o comportamento desses náufragos (mesmo que as tivéssemos ninguém ligaria nenhuma) ou mesmo um Estado capaz de organizar estes pobres coitados que vieram dar a estes lados.
É óbvio, mas não é justificável. O comportamento das sociedades modernas já não é determinado pelas instituições e leis que se possam criar hoje em dia, mas sim por séculos de convívio em sociedade, onde foram estabelecidos os padrões de comportamento que deveriam guiar-nos no dia-a-dia. Estejamos nós no país mais desenvolvido ou numa ilha isolada sem qualquer vestígio de intervenção humana, deveríamos seguir os mesmos princípios de conduta.
Se perdermos estes princípios, não haverá Instituição, Lei ou Estado que consiga restabelecer a nossa humanidade. É por isso que temos de nos esforçar todos os dias, para aplicarmos estes princípios em todas as nossas acções, mesmo as mais insignificantes. Ainda que todos que nos rodeiam não o façam. Parecerá um esforço em vão, mas isso lembra-me aquela passagem na qual um homem prestes a perdera a fé na Humanidade, caminha pela praia e encontra um menino a atirar de volta ao oceano, uma a uma, milhares de estrelas do mar que vieram parar a praia após uma tempestade. Diante desta imagem, o homem pergunta ao menino que diferença fazia ele estar a devolver aquelas estrelas ao mar para salva-las, se eram aos milhares e ele era apenas um menino. O menino pegou em mais uma estrela, mostrou-a ao homem e disse-lhe: - Para esta faz toda a diferença. E de seguida atirou-a ao mar.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

As histórias de Náufragos são todas iguais (Parte II)

Também como na série televisiva, na minha ilha existem os Outros. Os Outros vivem na ilha há muito tempo, construíram uma sociedade que se pretendia “perfeita”, mas como era de se esperar, transformou-se numa comunidade bizarra, capaz de mutilar a liberdade dos indivíduos em prol do suposto bem-estar do grupo. Definiram regras de conduta às quais apenas alguns (os mais fracos) estão sujeitos. Os outros (que governam os Outros), estão acima da lei, ou abaixo, ou talvez ao lado. Enfim, em qualquer sítio onde ela não esteja.
Os Outros são uma ameaça para os novos náufragos da ilha como eu, uma vez que pretendem que engordemos as fileiras dos outros (os que são governados), que pagam tributos e servem a “Comunidade”. Os outros que mandam, manipulam e enganam o resto dos Outros, para que acreditem que não são capazes de sobreviver sozinhos e de que não há melhor sítio para estar do que nesta ilha.
Todos nós, com excepção dos outros (que exploram os Outros), dividem-se entre a ânsia de conseguir escapar da ilha em busca de um sítio melhor, ou o desejo de um dia vir a ser um dos que mandam nos Outros. Acredito que a escolha correcta seria deixarmos de por a culpa nos Outros, assumirmos o controle das nossas vidas e transformarmos esta ilha num sítio melhor para todos. Como? Isso eu ainda não sei. Mas aceito sugestões.

As histórias de Náufragos são todas iguais (Parte I)

Se porventura encontrou esta mensagem, passo a descrever a ilha onde naufraguei, na esperança de pode vir a ser resgatado um dia, apesar de considerar esta hipótese muito remota, por não fazer a mínima ideia de onde estou. Esta ilha não deverá ser muito diferente de muitas outras que se encontram neste oceano. Este facto deixa-me ainda mais desesperançado, pois com tantas ilhas iguais, dificilmente alguém conseguirá identificar aquela onde me encontro. Para vos descrever a minha ilha, poderia utilizar os muitos estereótipos que foram utilizados nas diversas versões cinematográficas que já foram realizadas sobre náufragos. Mas aquela que me parece mais próxima da realidade que vivo, é a versão de uma série televisiva americana que tenho visto ultimamente, nos longos períodos de ócio intelectual que fazem parte da vida de um náufrago.
Como na tal série de televisão, nós também somos uns quantos náufragos aqui na ilha. Tentamos funcionar como uma comunidade integrada, mais os interesses individuais sobrepõe-se aos do colectivo. O passado de cada um guarda segredos que acabam por influenciar a forma como os náufragos interagem com o grupo. Com a desculpa destes segredos do passado, o grupo ou parte dele é obrigado a aceitar certas falhas de carácter ou de personalidade e consideram isto normal.

Há sempre um sítio melhor algures?

Acredito que o Homem raramente se sente completo no sítio onde está. Com “completo”, refiro-me a sentir-se bem consigo e com o meio que o rodeia. Há uma característica humana inerente, que é a de sofrer e lutar para colocar o seu meio de acordo com a sua vontade. Por que acham que os sítios mais paradisíacos do nosso planeta, são normalmente os menos desenvolvidos numa perspectiva humana? Enquanto que as sociedades “mais desenvolvidas” vivem nos locais mais frios e inóspitos deste Globo. Segundo os especialistas da matéria, o Homem na sua viagem evolucionista, deixou os lugares mais quentes e apetecíveis do planeta, para instalar-se definitivamente nas zonas mais frias e sombrias do hemisfério norte. Não havia piada em viver num sítio onde tudo já estava pronto. Era preciso adaptar um meio mais inóspito.
Daí concluí que não foi Deus que expulsou o Homem do Paraíso. Foi o Homem que o abandonou, pois não tinha piada nenhuma estar num sítio com tudo à distância de esticar uma mão. Achamos que divertido mesmo, era chegar num sítio semi-árido ou gélido para cavar a terra, trabalhar, sofrer, sangrar e morrer até que tudo estivesse parecido com o Paraíso que Deus havia feito. O pior foi o que aconteceu depois. Quando o Homem viu a asneira que havia feito e para não ficar mau na fotografia, resolveu contar à sua descendência que havia sido Deus a expulsa-lo do Paraíso. E ainda floreou com uma história digna de Hollywood que incluía sexo, traição, serpentes falantes, uma Árvore com um “Códici” qualquer e muitos efeitos especiais. Pobre Deus. Deixou de perceber o Homem desde então.